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A escrita-denúncia de Sandra Godinho em Tocaia do Norte



Nesta seara de escritores(as) em processo de construção surgem às vezes aqueles(as) que surpreendem pelo estilo já bem definido e a densidade de ideias transformadas em narrativa. Sandra Godinho, não só se encaixa nesta categoria, como demonstra uma qualidade original que poucos conseguem ter ao longo do processo de aperfeiçoamento como escritor(a). Em Tocaia do Norte, sua atenção aos contextos marginais e socialmente invisíveis nos sensibiliza e, com toda certeza, nos provoca inquietações necessárias.

A obra Tocaia do Norte, vencedora como melhor romance no Prêmio Nacional da Cidade de Manaus em 2020 e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021, é um romance documental e de denúncia no qual a autora magistralmente narra e tece os fios pérfidos de uma tragédia que envolve as populações indígenas da Amazônia, a igreja catequizadora e a ditadura militar brasileira em meados da década de 60. Percebe-se ao longo da trama a riqueza de detalhes que, embora tente recapitular um fato histórico, vai além disso e nos envolve nas histórias das personagens centrais e suas mazelas.

O narrador seminarista sem Deus, João de Deus, nos apresenta a sequência de ações sob o seu olhar enviesado e desencontrado. Em busca de um norte que o oriente aos próprios desejos, sobra-lhe tocaia e a prisão amarga de seguir as vontades alheias. A empatia construída pelo narrador junto ao leitor(a) é quase instantânea, nos identificamos com a inconformação de João em relação à desapropriação de si mesmo e de seu direito de escolha, sofrendo imposições e sanções de sua própria família. A posição subjetiva de João ao longo da história estabelece paralelos e analogias com a condição do povo indígena aculturado e desapropriado de suas crenças e costumes pelas invasões e imposições do homem branco. Situados em um lugar subalterno, os índios, classe supostamente inferior e incivilizada, estão à mercê das disputas territoriais, em uma terra que lhes é de direito. Protegendo com flechas e malocas uma humanidade não reconhecida.

Enquanto lia capturada, refletia sobre as hombridades e machezas defendidas entre impropérios e armas, lembrei-me de imediato do livro “Por que os sinos dobram” de Ernest Hemingway, num processo de associações entre as duas obras e o destaque de ambas aos homens que preferem a morte à submissão. Em toda a narrativa, escrita por uma mulher, há traços característicos e marcantes das masculinidades muito presentes nessa nossa cultura brasileira. Das mulheres com razão e sem voz aos homens histéricos irracionais, acompanhamos a valorização do belicismo como aquilo que define um tipo de masculinidade hegemônica, o que inclui também a qualidade de desbravar e colonizar a qualquer custo. Herança maldita de homens violentos e violadores que persiste até hoje. O enaltecimento e o horror desse masculino são buscados e repudiados pela personagem central, então seminarista, numa espécie de reconhecimento e desconstrução daquilo que configura sua própria virilidade. Lutando para sobreviver e preservar a parte de si que ainda desconhece, João encontra nas próprias fragilidades o que precisa para se reconstruir como um outro tipo de homem.

Não poderia deixar de mencionar também a qualidade estética sustentada pelo estilo de escrita da autora, a nos brindar com um lirismo poético e com a preservação da oralidade regional a partir das expressões linguageiras e idiomáticas relativas à região Norte do Brasil. Regionalismos que muitas vezes são também invisibilizados e/ou inferiorizados em nome da norma culta, esta infelizmente nem sempre defendida em prol da preservação cultural. Os dialetos regionais que se remontem para se adequar às normatividades!

Constato ao final da leitura, mantida com interesse até a última página, o quanto Sandra Godinho consegue, destrinchando um fato histórico e pregresso, manter-se atual em sua escrita. A julgar pelas notícias que acompanhamos neste nosso ano do senhor de 2022, a exploração, invasão e aculturação dos territórios indígenas na Amazônia continuam a toque de bala. Estaremos sempre retomando estas raízes colonizadoras ou nunca saímos do período colonial? Enquanto isso a população indígena segue sendo massacrada, o extermínio de selvagens sempre justificado pelas disputas de poder. Escolher a quem matar tornou-se a primazia em uma sociedade selvagem dita civilizada. Por tudo isso, Tocaia do Norte é leitura recomendada e essencial. Sandra Godinho segue como escritora complexa e consistente a sustentar com a pena o poder revolucionário das palavras.


Carine Mendes

Escritora, psicóloga e professora.

Instagram: @_carinemendes_

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