Sentado, espero a máquina de voar, o grande invento de Santos Dumont, casualmente lanço um olhar a bagagem, coisas que trouxe por serem necessárias, mas, curioso como as coisas do coração parecem mais pesadas, quando provamos a amargura de viver... enquanto isso, lá fora a garoa fina se precipitou em uma chuva pouco antes das duas da madrugada, deixando tudo ainda mais lúgubre.
A neblina se apoderou do espaço, isolando-me entre as paredes de concreto e aço do saguão do aeroporto. Levanto, vou até à máquina que me exige três moedas por um cálido café, puro e sem açúcar... emerge um pensamento alheio, três moedas serviriam de paga ao barqueiro do submundo pela travessia da alma.
Mas, aeroportos são não-lugares que pertencem a Cronos e de onde não se pode escapar nem com o suborno do velho sovina Caronte... é o relógio meu carrasco, o vigia do hiato incongruente de tempo de doze horas de escala do meu voo, o movimento compassado dos seus ponteiros que afigura a eternidade em cada segundo... transformando a espera em indelével sentença.
Acabo absorto a imutabilidade melancólica soturna deste não-lugar com suas paredes opacas e janelas rodeadas pela neblina cinza. O aroma do preto fumegante e amargo se espraia pelo vazio do saguão, enquanto as cadeiras enfileiradas uniformemente como lápides de mármore de um cemitério, testemunham complacentes a minha desmaterialização de um hediondo niilismo-existencialista de Sartre.
Avisto que pela borda uma gota de café escorre e risca o exterior branco do copo de isopor, até depositar-se no braço da cadeira, antes quente e aromática agora repousa fria e imota como que em leito de morte. A vida e a sua insolúvel quimera de alma e carne, que em essência carrega o mal-estar e uma natureza que nos obriga ao ato de respirar.
Recolho um periódico com data de ontem caído ao lado da cadeira, condição que não referencio importância, pois somente preciso me alimentar de qualquer notícia ou banalidade, migalhas de vida, antes que a minha existência se dissolva na temporalidade estática deste não-lugar.
De repente, no limiar da metástase da insanidade, resgata-me divisar a pequena fita branca e vermelha esquecida pressa ao meu pulso esquerdo... havia a obtido a tarde, quando visitei meu pai no hospital... agora somente um corpo frágil de cabelos brancos com a barba por fazer, semblante que contrastava com minhas memórias de infância, do homem de figura austera que sempre carregava moedas e balas de hortelã nos bolsos da calça.
Quando cheguei no quarto estava sentado na cadeira de balanço ao lado da janela, um olhar ao infinito, então peguei uma bacia com água e sabão, afiei a antiga lâmina, sentei ao seu lado para fazer-lhe a barba... mas, ele não me reconheceu, o estágio avançado do Alzheimer deteriorou sua consciência do presente, e também o aprisionou em um não-lugar de espaçadas memórias soltas no tempo.
A tarde, num rompante de lucidez, após o ápice de uma crise de confusão mental, destes que raramente aconteciam, enquanto saia do quarto, deitado na cama meu pai disse – você terá de manter nossos dias na memória – enquanto caminha pelo longo e estreito corredor do hospital percebi que não havia conseguido debelar o passado, eu não carregava perdão nos bolsos, a lembrança das bebedeiras e as ausências ainda ocupavam meu coração acorrentando-o ao passado.
E então se constituiu no pensamento uma alheia lembrança pueril, destas que acabam virando desmemoria enquanto crescemos, da letra de uma música de um antigo disco que o meu pai escutava a noite, “havia aviões para pegar e contas a pagar”. Habita-me uma sensação desconcertante causada pelo deja vi, será que sou a figura com o terno cinza-escuro? Estou imerso no limbo de um mundo estagnado, o facínora embuste pós-moderno?
De repente uma furtiva preocupação causou-me inquietação, seremos abstrações constituídas em impulsos eletromagnéticos alheios ou meras inexistências sepultadas no esquecimento, vagantes na vida entre as ilhas da chegada e da partida? A sensação de estranhamento era indissociável das células do meu corpo, enquanto o meu olhar laçava-se revolto contra o relógio que naquele não-lugar condenava-me a cumprir a sentença.
Sei que meu carrasco não é dado a qualquer concessão sobre suas sentenças... então resta-me apenas voltar a máquina buscar outro café fumegante, puro e sem açúcar e caminhar entre as enfileiradas cadeiras do meu cárcere, perdendo alheios pensamentos enquanto o tilintar das moedas quebra o silêncio melancólico do vazio deste não-lugar, enquanto aguardo o pouso da gigante máquina de voar.
Carinhosamente à memória de Harry Forster Chapin.
Cesar L. Theis
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