O desespero se levantou da cama naquela manhã e roeu a cal das paredes.
O desespero comeu o cimento das reentrâncias, o fosfato dos tijolos e a tinta fresca. Lambeu os lábios secos e os filetes de sangue quente. O desespero rangeu os dentes e roeu as unhas dos dedos dos pés, arrancou as cutículas e as cascas das feridas até que não sobrasse coisa alguma.
O desespero como um glutão comeu meu café da manhã, meu almoço e meu jantar para depois vomitar palavras de arrependimento. O desespero comeu o arrependimento e esfregou os dedos no tampo do sanitário.
O desespero aspirou meus pós e bebeu meu vinho. E derrubou a taça que encarnou a toalha de mesa. Que rasgou-se em trapos que virou-se a mesa que atirou-se pela janela encarnando a calçada com um tom suave de criança.
O desespero tomou meus analgésicos, meus anestésicos, meus narcóticos e meus tranqüilizantes. O desespero tomou todos os meus tranqüilizantes. E tomou-me pela mão docemente até arrancar meus braços. E caminhamos lentamente até alejar-me as pernas.
Mas o desespero anorexo quebrava os próprios ossos se jogando contra a parede ininterruptamente em um êxtase de agonia profunda. E ele o fez até devorar a parede inteira.
O desespero calçou as sapatilhas e dançou o lago dos cisnes até cair de exaustão nos cacos de vidro. O desespero mastigava os cacos de vidro.
E saiu às ruas gritando para ficar mudo, chorando para ficar cego e apenas ouvindo a indiferença para ficar surdo. O desespero furou a garganta, os olhos e os tímpanos, mas ainda assim podia sentir a indiferença.
Subiu as escadas agonizando no acrílico. Apoiou-se nos corrimões cuspidos. Caiu de cara na própria acidez do solo. Não havia tapetes.
O desespero não acharia aconchego nos tapetes, nem nos gritos, nem no vômito nem na cal das paredes. O desespero comeu minha paciência, minha tranqüilidade, meus filhos e minha decência. O desespero comeu minha existência.
No fim de todos os dias quero acreditar que o desespero sou tudo, menos eu.
Por Mário da Mata
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