Não foi possível afugentar a criatura.
Entrou com a boca aberta, dentes a mostra e atacou o balcão refrigerado onde repousavam as carnes mortas e frias.
Depois de arrancar com os dentes a parte do balcão facilmente amolecida pelas mordidas e saliva, o acesso às carnes geladas, sem vida, alinhadas e cortadas por facão causou na criatura uma espécie de paralisação quase imperceptível, como se aquilo que se oferecia diante dela fosse uma ilusão.
Rapidamente e de forma abrupta, a criatura se recuperou do quase devaneio e assim como um aspirador caseiro diante do pó cotidiano no chão deslizante, abocanhou o conteúdo do balcão parcialmente destruído e pedaços de carne e sangue ficaram como um rastro do caminho da suposta destruição.
O caráter quase criminoso da cena, aparentemente, escondia a motivação da criatura que, por sua inevitável existência, transformava a motivação em necessidade e a necessidade de sobrevivência em um movimento involuntário, como a tentativa da respiração que acontece a um humano embaixo d'água, quando a consequência deste ato urgente enche de água o espaço que deveria ser ocupado pelo ar.
Ainda assim, a criatura foi julgada. Não pelo seu ato, é possível observar, mas pela sua existência. Felizmente, no ato do julgamento, a criatura já estava distante e alimentada, o que lhe deu algum tempo de vantagem para longe daqueles que teimavam aniquilá-la.
Flavia Ferrari
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