A poesia nos oferece a ocasião privilegiada para reflexão sobre temas sensíveis da nossa sociedade. Ela abre virtualidades para que a sociedade explore através da imagem modalidades de existência invisibilizadas, silenciadas pelo conhecimento hegemônico. A poesia recupera essas experiências e lhes toma como oficina de produção da resistência, de subversão das textualizações hegemônicas, de inscrição de novos valores culturais.
Quando pensamos a escrita como uma forma de resistência também percebemos que a função das poetisas é fundamental na sociedade. Basta lembrar o legado de Carolina Maria de Jesus que colocou problemas muito relevantes a partir de sua escrita subversiva. Essa mulher se tornou um marco da escrita na Literatura Brasileira ao se posicionar como mulher negra, pobre e “favelada” na década de 1960 em seu clássico Quarto de Despejo. Carolina tornou a escrita uma forma de falar sobre si mesma, denunciando a condição marginal das “minorias” através do testemunho, do lirismo – marcas de sua criatividade literária.
A descrição que Carolina faz da fome ilustra sua sensibilidade para compreender e discutir sobre a desigualdade social e racial a partir da própria experiência. Não é de se espantar que a autora negra tenha capturado com precisão o episódio da fome, essa circunstância marcava sua realidade familiar e estruturava sua posição desigual no mundo. Carolina emociona através de sua escrita particularmente fixada na realidade, desvelando a injustiça social que marca a experiência negra na sociedade brasileira ao evidenciar que a “abolição” não se efetivou como uma transformação social profunda. Esse trecho merece ser citado na íntegra, pois não acredito que seja capaz de fazê-lo tão bem quando a autora:
13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia
simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. ...Nas
prisões os negros eram os bodes expiatorios. Mas os
brancos agora são mais cultos. E não nos trata com
desprezo. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A
chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos
para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva,
para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o
dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.
...Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada: – Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de
sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu
mandei o João pedir um pouquinho de gordura a Dona
Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: – “Dona
Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura,
para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu
e eu não pude catar papel. Agradeço, Carolina”.
...Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno
a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu
não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estava com dois
cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para
fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (JESUS, p.27)
Minha avó Maria Toinha, mulher negra, pobre e nordestina em muito me lembra a escrita autobiográfica de Carolina Maria de Jesus. Ela escreve aos 85 anos sobre os Encantados, os quais na sua textualização são descritos como entidades espirituais comuns aos cultos de umbanda. Maria Toinha escreve de um lugar socialmente invisibilizado sobre uma temática alvo de preconceito e discriminação no Brasil. Sua escrita é subversiva especialmente por tomar sua experiência como ponto de partida para reflexões mais amplas.
A mamãe costurava nossos vestidinhos de saco de
açúcar. Quase não tínhamos roupas e as poucas peças
que possuíamos eram costuradas pelas mãos de
mamãe a partir de retalhos reaproveitados. Uma
experiência de fornecer utilidade ao que já tinha sido
perdido por outros. E entre retalhos – pedaços de vida
– e sacos a gente se vestia de estórias. Sobre este tempo
me recordo de uma vez na qual eu só possuía um
vestidinho e precisei ficar enrolada no lençol enquanto
minha mamãe foi lavar aquela roupinha no córrego (SANTOS; SANTOS, 2020, p. 36).
Nesse sentido, tal como Carolina Maria de Jesus, essa outra mulher negra e pobre lança mão da autobiografia para afirmar um modo de vida, uma estética da existência sem valor de mercadoria. Exatamente por essa razão que ambas são perfeitas para a poesia, como diria o poeta Manoel de Barros.
Maria Toinha constrói por meio de seu relato uma concepção de Mundo Encantado. Essa concepção é tecida cuidadosamente por meio da experiência como médium e como Mãe de Santo que recebeu os ensinamentos dos Encantados através de diferentes comunicações nos sonhos, em trabalhos de umbanda, em visões, nas conversas com seu Pai de Santo. E assim, essa outra autora negra afirma que:
Foram os mistérios dos Encantados que me
transformaram em caminhante e que me fizeram
ser uma poesia vagante. Fazer o bem, mas não
num lugar à espera do outros, à espera de ser
encontrada por quem sofria. Não. Meu destino
consistia em ganhar o mundo e descobrir aqueles
que sofriam, oferecer-lhes ajuda, cura-lhes na mística
dos Cavaleiros de Luz. Eu tinha de descaminhar
abrindo veredas pelo mundo, criando passagens,
encontros, despedidas. E os Encantados passariam.
Chegariam aonde ainda não tinham ido. Anunciariam
suas presenças através de mim; mostrariam a força;
enfrentariam o mal e trariam esperança para aqueles
que sofriam. Minhas andanças tornavam este mundo
maior para os Encantados, multiplicando suas ações de caridade. (SANTOS; SANTOS, 2020, p. 49).
A concepção de um Mundo Encantado ressoa do livro A Mística dos Encantados, escrito por Maria Toinha, como uma abertura através da qual o mundo é refeito pela presença e deslocamento de entidades espirituais que se pertencem ao mistério. Essa possibilidade, entretanto, se concretiza a partir da mediação de Mães e de Pais de Santos – os médiuns. Portanto, a potência deste conceito pode ser visualizada em sua tentativa de reconciliar este mundo com tantos outros mundos que existem para além da racionalidade cartesiana. O Mundo Encantado como promessa da escrita de si de Maria Toinha é um exercício que questiona os limites de nosso conhecimento, afirmando que o mistério é central numa proposta de conhecimento mais aberta e generosa à complexa experiência humana.
Marcos Andrade Alves dos Santos (Colaborador Oficial Escrita Cafeína)
Instagram: @marcosencante
Referências Bibliográficas
JESUS, C. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
SANTOS, M. M.; SANTOS, M. A. A. A Mística dos Encantados. Trairi: Editora Edições e Publicações, 2020.