Eu não saberia escrever sobre os Encantados e sobre os Desimportantes da Lavagem sem que minha avó, a Maria Toinha, tivesse partilhado de suas memórias comigo. Ela trabalhou minha imaginação como quando alguém cultiva um jardim. Lembro que durante toda minha infância, ela me contava muitas estórias importantes. Ela representava os enredos, mudava as vozes para dar vida a personagens, acrescia de emoção as cenas. E chorava sempre que alguém querido renascia em suas lembranças.
Minha avó sempre foi uma artista que se desenvolveu por meio da oralidade. E nunca parou de contar, embora a dor e a velhice paulatinamente consumissem suas carnes. Maria Toinha tinha o sonho de nunca morrer. E pensou que as palavras pudessem continuá-la depois de sua partida desse mundo.
Foi minha avó quem me apresentou a gente sofrida e esquecida da Lavagem por meio da sua história de vida. Maria Toinha jamais conseguiu falar de si mesma sem falar de tantos outros que já haviam partido, mas que reclamavam ser rememorados como finados e finadas. Esse acerto que ela fazia revivia aquelas pessoas, demonstrando a sua importância nesse mundo. Ela se perguntava o que tornava alguém passível de ser lembrado e chegava à conclusão que era o único meio para que eles ainda continuassem a existir. Ela sabia que a morte não calava as pessoas. E tentou executar esse trabalho histórico de conceder voz aos excluídos sociais por meio de sua narrativa e da sua escrita de si.
Posso parecer muito pretensioso ao chamar Maria Toinha de minha avó, como se ela tivesse sido apenas minha avó. Na verdade, Maria Toinha tem mais netos do que eu poderia contar e chegou a ser mãe de muitas pessoas que lhe queriam bem como a uma mãe de sangue. Ela foi amada por muitas pessoas sem voz e por muitos andarilhos. Quando a chamo de minha avó rememoro o nosso laço muito próximo, mas também digo que ela e eu nos tornamos um só quando escrevemos.
Foi isso o que tentei dizer quando escrevemos juntos a Mística dos Encantados ou tantas outras estórias. Nós unimos nossas imaginações e criamos tudo de modo que eu e ela não soubéssemos mais identificar a quem pertencia esta ou aquela imagem..., mas eu sei que minha avó, a Maria Toinha, é infinitamente melhor do que eu. Ela é tudo que eu não consigo ser, por isso preciso me despir de meu corpo e chamá-la para escrever por mim.
Marcos Andrade Alves dos Santos
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