Os Encantados navegam pelo mundo em diferentes formas. Descobri esse mistério durante toda uma vida vendo o mistério se refazer diante de minha visão. Os Encantados escolheram minha vida como morada, assim partilhamos a carne, os sonhos, os pensamentos, o vento. Por muitas vezes dormi nos braços do ar. Também dormi no céu estrelado – os astros me aninhavam enquanto meu corpo dançava na terra entoado com meu Guia. Andei em paragens de belezas inesgotáveis acompanhadas de Índias e Princesas Pretas. Fui levada para o entremundo, onde os espíritos dos mortais aguardam por sua sentença. Mas também os Encantados me apareceram neste mundo, na beira do mar, debaixo do cajueiro açucrinha, no dorso das dunas de Mundaú, nas estradas da Lavagem.
Os Encantados moram em muitas partes, em muitos mundos. Certa vez encontrei a morada de uma velha chamada Mamãe Exu. Ela enfeitiçou meu caminho para que nos encontrássemos à sombra da azeitoneira. Deu-me vontade de sair pelo mato e eu saí. Abri caminho entre as touceiras de vassoura braba e de quatro pataca. A malícia estava secando, o capim mais fino também. Não foi difícil fazer uma estradinha até a azeitoneira. Ela se impunha tão verde, parecia que era aguada em pleno verão. Recebia o sereno da noite, mas parecia que havia encontrado outra forma de beber água. Abri as primeiras folhas com as mãos, pois os galhos pendiam até o chão. A árvore não tinha frutas. E a velha estava ali curvada com uma vassourinha na mão. A vassoura é uma planta muito útil para quem deseja varrer as areias. Basta que se amarre com barbante umas poucas vassouras num cabo de madeira e já é possível limpar a casa e o quintal. Foi a minha avó quem me ensinou esse segredo, era assim que fazíamos na semana santa para não rasgar o chão. A Mamãe Exu conhecia muito mais essa feitura de vassoura, portanto não me admirei que ela cuidasse da sua azeitoneira com aquela vassourinha. Ela varria tudo muito devagar. O turbante na cabeça, o cachimbo na boca, as vestes brancas com desenhos pretos, o corpo pregueado de rugas. O sol não chegava no chão. A luz dormia nas folhas. Assim que me viu, a Mamãe Exu falou sorrindo:
— Já chegou a minha filha. Se sente nessa areia antiga.
— Deus te Salve, minha mãe – disse me sentando.
— Fico feliz que tenha encontrado o caminho. Faz tempo que eu te chamo para cá – ela puxou o fumo de seu cachimbo e continuou – Oxalá foi quem me mandou. Ele disse que as areias guardam as energias de nossos ancestrais, por isso que a terra é tão poderosa, minha filha. Os Encantados precisam vir a terra de quando em quando para lembrar ao povo da nossa ligação, lembrar que os mundos estão ligados pelo mistério.
— Sei que não se deve interromper uma velha de tanto saber, minha mãe, mas a senhora mora aqui?
Ela riu de minha pergunta enquanto ajeitava a vassoura no tronco da azeitoneira. O vento se calou. Então a Mamãe Exu puxou novamente o fumo com os pulmões. O Cachimbo reacendeu as brasas. Ela libertou a fumaça aproximando a boca da areia. Parece que queria defumar aquele pedaço de chão. Não havia nenhuma folha. A areia recebeu o incenso. Meus pés se aqueceram com aquela energia. Depois a Velha falou:
— Você já sabe muitos de nossos mistérios, minha filha. Você foi escolhida pelo Antigamente. Mas lhe cabe saber que eu moro onde Oxalá me permite. Eu pedi a ele essa azeitoneira e ele me concedeu. Sei que compreende que passo como o vento, de mundo em mundo. Refaço minha morada como os animais das conchas. Eu cresço com as palavras. Eu curo com a mística de Aruanda. Eu moro nos sonhos e nos corações dos meus filhos de fé.
Senti a fé daquelas palavras e agradeci a oportunidade de ouvi-las pela boca sagrada da minha Mãe Curadora. Anotei estes segredos em minha memória para jamais esquecer onde os Encantados moram e que eles passam como vento. Passei a tarde aprendendo com a minha Mamãe Exu. Ele me entregou coisas preciosas e eu deixei que enfeitasse minha alma com o mistério debaixo de sua azeitoneira.
Marcos Andrade Alves dos Santos
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