O mendigo sabia que fazia parte das ruínas humanas. Não por causa do seu corpo e mente, mas de seu destino. Se quando nasceu Deus o escolheu para vagar nas ruas, não ter onde dormir, sofrer com dor de dente, cabelos com caspa, pele com feridas, unhas grandes e sujas, o que podia fazer? Não seria isso que o faria jogar fora o crucifixo que um dia achou no chão. Se Deus quis dar à sua vida uma rima para a desgraça, não caberia julgá-lo. Ao contrário, no chafariz da praça lavava o crucifixo e o deixava secar ao sol. Não secava com o tecido rasgado de sua roupa fedida. Deus não merece.
Certa manhã uma viatura policial parou rente ao meio-fio da praça. O mendigo dormia no banco. O sol ainda estava frio. Um dos policiais desceu da viatura, caminhou até o banco e o cutucou com o cassetete. O mendigo sempre teve o sono leve e abriu os olhos. Sem dizer nada, levantou-se e se afastou sem olhar para trás. Antigamente outro policial o acordava com um copo descartável com café da padaria e um pão com manteiga. Se tiver que dormir noutro lugar, fica longe da padaria e longe do chafariz.
Conhecia um viaduto que ficava no final da rua. Poderia dormir ali, na parte de baixo, se já não tivessem outros com mulheres e crianças. A praça era o seu lugar.
Certa noite, quando a cidade dormia e a madrugada vinha a passos lentos, o mendigo foi tomado por um arrebatamento. Quando se preparava para deitar no banco, o crucifixo caiu do bolso de sua calça. No chão, o objeto brilhava com o reflexo da luz da lua. Quando o mendigo esticou o braço para pegá-lo, o Ser Divino desgrudou-se da cruz, ergueu-se no ar e flutuou até a altura dos olhos do pobre homem. O mendigo prendeu a respiração. Os braços abertos da Divindade se moveram e apontaram para o alto. O mendigo seguiu com os olhos a direção dos braços erguidos do Ser de Luz que tinha as mãos espalmadas para o céu estrelado. Em silêncio, o Ser de Luz subiu, subiu, subiu até se tornar um ponto de luz que se misturou à luz da lua e desapareceu. O mendigo se levantou com os olhos grudados no clarão da lua. Pensativo, lembrou-se do crucifixo no chão e se abaixou para pegá-lo. A Divindade continuava pregada. Ele franziu os lábios e achou melhor fazer uma prece. Talvez tivesse que pedir perdão. Ajoelhou-se e apoiou os cotovelos no banco da praça com o crucifixo dentro das duas mãos unidas. Pediu perdão. Não usava a voz, apenas pensava. Sabia que Deus ouvia seus pensamentos. Pediu perdão, sempre em pensamento, por ter deixado o crucifixo cair. Se Deus quisesse, ele passaria o próximo dia sem comer, sem beber água, sem ficar na sombra da amendoeira, sem invejar o mendigo da outra praça que tem uma mulher. Fez suas promessas, ergueu-se, pôs o crucifixo no outro bolso da calça e deitou-se aliviado com mais uma promessa: não gastaria mais qualquer centavo das esmolas com cachaça. Puxou seu velho travesseiro feito de estopa e seu cobertor feito com sacos de lixos amarrados com linhas de pipa.
Mal adormeceu, sentiu alguém sentado aos seus pés na outra extremidade do banco. Encolheu os joelhos e olhou pelo canto dos olhos. A pessoa colocou as duas mãos nas pernas dele e sorria com os dentes da cor da lua.
O mendigo se mexeu para colocar as duas pernas no chão e o chão não estava ali. Quis apoiar os braços no banco da praça e viu seu corpo flutuante no ar gelado da noite. A pessoa também flutuava sentada. O mendigo se endireitou e, sem saber como, sentou-se no ar como a outra pessoa.
— Você sabe quem eu sou?
O mendigo, sem responder, tinha um olhar de vidro, sólido e silencioso.
— Sou uma de suas almas. Você sabia que tem duas almas?
O mendigo ignorou a pergunta. Apalpou o bolso para conferir se o crucifixo não tinha caído outra vez. Uma outra voz surgiu do outro lado.
— Eu sou sua outra alma.
O mendigo girou a cabeça e dessa vez se assustou. Levantou-se de sua pose flutuante e seus pés balançaram no ar em busca do chão. As duas almas sorriam. O mendigo olhou para a esquerda, depois para a direita e viu aqueles seres em forma de vapor leitoso que o ladeavam.
— Você gosta de ter duas almas? — perguntou a alma do lado direito.
O mendigo sabia que as almas também escutam pensamento. Então fez força para não pensar em nada, não responder nada nem em pensamento, nem com os olhos. Preferiu fechar suas pálpebras. As duas almas, então, começaram a cantar num idioma estranho. De olhos fechados apalpou outra vez o bolso da calça. De repente as almas pararam de cantar. Começou uma discussão.
— Ele é meu.
— Não é.
— É sim.
— Nunca será.
Então ele abriu os olhos e viu as duas almas uma com a mão no pescoço da outra. Era uma briga descontrolada. E aqueles seres de vapor haviam trocado de cor. Agora eram fumaças negras com olhos cor de ametista.
— É meu.
— Não é.
— É sim.
— Jamais.
O mendigo compreendeu sua condição. As pessoas normais têm salário, família, amigos, televisão, garrafa térmica e cama. Vivem penteadas e sem dor de dente. Eram pessoas que tinham uma alma. Não havia disputa pelo destino do corpo e da cabeça. Só alguém com duas almas não tem casa, vive sem família, sem o dente da frente, sem chinelo nem desodorante. Era um destino aleatório enquanto as duas almas não se resolvessem. Ele quis perguntar desde quando as duas criaturas lutavam pelo seu futuro, ou pelo seu passado, tanto faz. Mas não perguntou. As criaturas roncavam palavras desconhecidas.
O mendigo flutuava no vazio da escuridão, no colo da madrugada. Desengonçado no ar, conseguiu dar as costas às duas criaturas. Olhou o céu estrelado e a lua. Perguntou em pensamento por que o luar ajudava os poetas, por que ele nunca podia comer uma macarronada quentinha, por que alguém, aos olhos de Deus, era mendigo?
Absorto, não percebeu o desaparecimento das duas almas. Girou o corpo no ar e se viu só. Viu lá do alto o caminhão de lixo parando a cada dez metros. Estava com fome. Esticou o corpo e se deslocou voando com gestos desengonçados. À certa altura sentiu o odor das lixeiras e certamente teria o seu jantar. Fez seu pouso entre as folhagens da amendoeira. Escamoteou-se por detrás do tronco e pôs seus pés descalços no chão da praça. Apalpou sua calça e certificou-se do crucifixo no bolso. Caminhou até as lixeiras mais à frente antes do caminhão as retirar. Ratos e baratas não eram problema. Eram seres de Deus também.
Achou um hambúrguer quase inteiro e o levou para comer no banco. Estava numa noite de sorte. Mastigava-o feliz. Quando limpava a barba com as costas da mão ouviu a sirene de uma ambulância. O caminhão de lixo já ia longe na avenida. A ambulância parou rente ao meio-fio da praça. A luz vermelha cintilava no teto enquanto dois enfermeiros traziam uma maca em sua direção. O mendigo se levantou num relance e o crucifixo caiu outra vez do seu bolso. Mas não dava tempo de apanhar. Foi para trás da amendoeira. Deu um arroto mas os enfermeiros não escutaram. Pegaram alguém no banco onde ele dormia. Puseram-no na maca de rodinhas e quando regressavam para a ambulância pararam subitamente no meio do caminho. Um dos enfermeiros voltou até o banco. Abaixou-se, pegou o crucifixo, seguiu até a maca, colocaram-na na ambulância e foram embora.
O mendigo saiu de trás da amendoeira. Ao retornar ao seu banco, viu aquelas duas almas sentadas. Antes de mais nada olhou para o chão e conferiu que realmente tinham levado o seu crucifixo. Uma das duas almas lhe disse “deixa pra lá”. A outra concordou: “isso mesmo, esqueça, agora somos três”.
O mendigo olhou suas mãos feitas de fumaça. Era uma fumaça branca. Só não sabia até quando.
Farlley Derze
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