Marcelino circula pelas ruas, essas línguas cinzentas e calosas que deslizam até bocas de becos, bocas de fumo, bocas sem saída em movimentos dissimulados de rebeldia. O medo dos castigos, o medo das punições. O medo dos tapas. Socos e pontapés não mais existem. Só existem as lembranças que o chicoteiam em lapsos sem qualquer comando. Comando só o dele. Controle também. Não existe mais bolas que rolam. Tudo o que rola são as pedras de crack. Soltas. Santas. Salvadoras porque os transportam a uma dimensão paralela, em espíritos cansados de ver demais atrás de portas, janelas, vielas, esgotos, espaços de miséria que a cidade acumula. Também ela cinzenta. Também ela cheia de dominação e de gente oprimida que se refugia em cantos e recantos, em superfícies de vidro que nada veem, nada escutam, nada refletem, nada anunciam. Marcelino vai formando sua gangue, rodando sem sair do lugar. (Orelha lavada, Infância roubada, 2018, Editora Oito e Meio)
Sandra Godinho
Instagram: @smgg396
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