Adentrar na literatura dos encantados através de Maria Toinha e Marcos Andrade é conhecer e reconhecer o estranho e o familiar desejo de procura por um norte, uma missão de vida ou um caminho que seja um fim em si mesmo. A escrita e os passos se deixam guiar pelo imprevisível, alinhavando fios conectados nem sempre de forma linear. É nesse entremeio emaranhado que Maria Toinha dá voz à narrativa, registrada por seu neto porta-escrita, conectando ambos nesse legado de memórias que fazem eco e mobilizam identificações.
Os livros A mística dos encantados e Caminhos encantados nos apresentam um mundo que sempre existiu, mas que permanece relegado aos caminhos ermos e esquecidos, como os percorridos por Maria e Chico Toinha. Na leitura atenta e fisgada pude ouvir os relatos e compreender a importância dos desimportantes que acolhem as personagens em cada parte desse descaminho. As narrativas tratam, sobretudo, da sabedoria que vem do caminhar, quando não necessariamente se sabe o rumo seguinte. Nesta nossa época e sociedade que vive entre funcionalidades e pragmatismos, resgatar o encanto pelo desconhecido e o prazer das simplicidades é a tônica que transforma essas narrativas em algo essencial para um novo despertar e, quem sabe também, um descomeço do leitor que se deixa tocar pelos efeitos estético-poéticos do texto.
Paralelo à peregrinação de nossos heróis anônimos em caminhos ressequidos e abatidos somos sutilmente confrontados com as vicissitudes da seca, da miséria social e da marginalidade das populações sertanejas e retirantes tão estereotipadas e associadas ao nordeste brasileiro. A oralidade de Maria Toinha, no entanto, sobrepõe-se às negatividades e flagelos, mostrando em meio à secura do sertão as belezas de sua terra e as gentilezas de seu povo, sempre pronto a oferecer abrigo e um prato de comida. A humildade humana se reflete nos pequenos gestos de agrado, de auxílio sem pagamento e na satisfação de poder trocar dois dedos de prosa com desconhecidos caminhantes. Os destinos se cruzam e se remoldam em encontros inusitados e reencontros acalentadores. Temos nessa abertura de caminhos o fortalecer da crença nas bondades gratuitas e na fé inabalável em alguns punhados de boa ventura.
Destaco também o fato de serem os primeiros livros literários nos quais pude ter acesso a alguns aspectos relacionados às especificidades da umbanda. Narrado por uma mãe de santo, os rituais de cura são retratados sem preconceitos, demonstrando e detalhando os processos e recursos utilizados por mulheres e homens médiuns, portais de efeitos e comunicações entre os seres humanos e os encantados. Maria Toinha e Marcos Andrade vão, desse modo, abrindo caminhos literários e revolucionando com ternura esta nossa literatura tão rica. A nós, leitores, resta o impacto da apreciação e o encantamento provocado por uma escrita que consegue em sua originalidade e sensibilidade nos transportar retroativamente aos antigos, reacendendo o interesse por nossa ancestralidade e reassegurando o resgate daquilo que continua fazendo parte de nossa história.
Carine Mendes
Escritora, psicóloga e professora.
Instagram: @_carinemendes_
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