Para todos que não puderam enterrar seus mortos
Morrer sempre foi o mais silencioso dos gestos
das gentes: o compartilhar a solidão e o silêncio,
cujo último elo era a certeza do advento do fim,
assim, lentamente despetalar um tempo de dor
nas cores de uma flor tão inútil quanto urgente.
Hoje ecoam entre nós ainda maiores silêncios,
ecos de um Coro surdo, um Réquiem composto
para voz alguma, sem Agnus Dei e sem adeus,
ou mesmo Deus, choro sem o consolo do Coro,
cuja a soma das vozes nos iludia humanidades.
Ficam uns braços pendidos na noite, e as mãos
que procuramos no escuro as sentimos buscar
nossos flancos, entretanto, elas tocam apenas
os flancos da nossa dor. Sem a certeza do corpo,
quem pranteará nossos mortos? Os seus olhos
nos buscam, sucede tocar-nos, não os fechamos,
vagam e velam por nós, que os sabemos lacrados.
Sem o beijo vazio na pele fria, só nos resta o difícil
odor de flores imaginárias que despetalamos no ar,
e atiramos na noite do silêncio do alto dos edifícios.
Enquanto isso, esse rei demente, que só por existir
nos violenta, incita Incitatus, gargalha galopa várzeas
de flores não colhidas para dores intocadas. Calígula,
canibal, cavalga ódio enquanto come carne humana
e cospe o sangue na taça profana da boca dos filhos.
Lúcio Autran
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