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Templos da inteligência - A lição de Dom Miguel de Unamuno



“’Vino a perder el juicio (El Quijote) “Por nuestro bien lo perdió; para dejarnos eterno ejemplo de generosidad espiritual. Con juicio, ¿hubiera sido tan heroico?”

Miguel de Unamuno – “Vida de Quijote y Sancho” – Catedra Letras Hispánicas


Em anos de medo e estupidez, convém lembrar histórias de tempos talvez ainda mais cinzentos, para que nos sirvam de exemplo, coragem e conforto, nesta ordem, para que a tanto não cheguemos.

E esta é das belas que conheço.

Doze de outubro de 1936, tempos sombrios. Acontecia, em Salamanca, um estranho “Festival da Raça Espanhola”, típico evento fascista. Presentes a esposa de generalíssimo Franco, Carmén Polo; o General Astray, nacionalistas diversos e certo malfadado professor Maldonado .

Os tempos eram sinistros, Franco matava seus desafetos com a tranquilidade de um caçador de coelhos, um “túnel de silêncio” envolvia a Espanha fascista, a Guerra Civil era uma trágica realidade. Dois meses antes Lorca fora assassinado, talvez por excepcional autor de teatro e poeta (“!Oh ciudad de los gitanos! / La guardia Civil se aleja / por um túnel de silêncio / mientras las llamas te cercan”), talvez por homossexual, talvez por levar ao povo o teatro, talvez, apenas e mais provavelmente, por cultivar a inteligência e a arte.

O professor Maldonado, e foi com esse triste episódio que passou à História, levanta-se, e, olhando fixamente o poeta, filósofo, dramaturgo e ensaísta Dom Miguel de Unamuno, ataca o nacionalismo basco e catalão, nominando-os “câncer da nação’, que precisava ser curado com o bisturi do fascismo”. Mais de um imbecil exclamou o macabro grito da Legião Estrangeira: “Viva la muerte!”, ecoado pelo general Astray, que não tinha um braço.

Unamuno, cuja obra admiro com todas as minhas forças, especialmente, três livros: “Niebla”; “Vida de Don Quijote y Sancho”, que nos serviu de epígrafe, genial ensaio ficcional sobre o Quijote e “Del Sentimiento Tragico de La Vida”, o único livro, dentre os que li de filósofos católicos, em que eu, triste agnóstico, ao final, tive uma quase irresistível vontade de crer, mesmo assim infelizmente infrutífera.

Dom Miguel, não por acaso, era reitor da universidade de Salamanca, onde o triste evento acontecia. Provavelmente arrependido de ter, escudado pelo seu prestígio internacional, poucos dias antes procurado o “Generalíssimo” Franco para pedir clemência para alguns cidadãos espanhóis, inclusive alunos da universidade da qual era reitor, o que resultara inútil, o filho da puta a todos fuzilaria.

Claudicante, se levanta, e do alto de seus setenta anos e do seu brilhantismo, corajoso como um Quixote, toma a palavra e profere um dos mais belos e contundentes discursos jamais ditos:

“Serei breve. A verdade é mais verdade quando se manifesta nua, livre de adornos e palavreados… (...). Os senhores me conhecem bem, e sabem que não sou capaz de ficar em silêncio. Às vezes, ficar calado é o mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação”. Frase que deve cruzar as décadas e ecoar nos ouvidos de todos nós, brasileiros.

“Gostaria, continuou, de comentar o discurso (...) do general Millán Astray (...). Vencer não é convencer e é preciso convencer, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a compaixão. Vou ignorar a afronta pessoal da súbita onda de vitupérios que ouvi contra bascos e catalães. Eu mesmo, que dúvida cabe disso, nasci em Bilbao. O bispo, goste ou não, é catalão de Barcelona. Ele ensina a doutrina cristã que o sr. (volta-se a Millán Astray) não aprende”. Cada vez mais contundente prossegue: “e eu, que sou basco, passei a vida ensinando a vocês o idioma espanhol, que o sr. não conhece”.

Vestido de preto, sua barba branca brilhava, contrastando com aqueles espíritos sombrios, e disse: “acabo de ouvir o necrófilo grito de ‘viva a morte!’, que para mim é como gritar ‘morte à vida’”.

“E eu, que passei toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e a zanga daqueles que não os compreenderam, tenho que lhes dizer, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. (...)”.

Unamuno se exalta, “o general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. (...) Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, (...) um inválido, como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor (...) Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada”.

Millán Astray, vermelho de ódio, grita “Morte à inteligência!”. O público completa aos brados: “viva a morte!”.

Os militares da Legião sacam suas armas dos coldres. Unamuno, não se intimida, e exclama esta beleza: “Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vocês estão profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio, profeta em meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque possuem a força bruta de sobra. Mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir precisam de uma coisa que lhes falta – razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-lhes que pensem na Espanha”.

Histéricos, os fascistas apontavam suas armas em direção a Unamuno. Porém, ele teve a sorte de ser protegido pela, naquele auditório, rara humanidade de uma mulher que lhe deu o braço, e o conduziu incólume.

Era Carmen Polo Franco, como traduz o nome mulher do “Generalíssimo” Francisco Franco Bahamonde, depois acremente recriminada pelo marido, sedento que estava do sangue de Unamuno.

Franco caçou a sua cátedra e o colocou em prisão domiciliar, e em dezembro daquele mesmo ano – de tristeza? – Unamuno morreria. Postumamente, em 2011, foi reconduzido ao cargo que lhe era de direito e de fato.

Quanto a Franco, em 2019, com a Espanha fazendo justiça histórica, foi retirado - para gáudio de todos nós que, ao contrário de alguns redivivos “millán astrays”, amamos a inteligência, a arte e a liberdade - do mausoléu que ele ridiculamente construíra para si próprio, um monumento no “Valle de los Caidos”, e transladado para um cemitério comum (na verdade, deveria ter sido deixado ao urubus). Pena eu não estar presente, para urinar em sua cova, nunca suficientemente profunda.

Talvez algum leitor esteja pensando que o poeta perdera o juízo, como um Quixote sem Sancho, mas... “con juicio, ¿hubiera sido tan heroico?”.

Fique para todos nós a sua lição.


Lúcio Autran



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