Ato 1 – palco
Sangue
Faca
Cartucho de bala
Barracas de lona
Panelas
Roupas
Fogão de duas bocas
Chupeta
Mamadeira
Mijo
Merda
A chuva lavou todo o sangue derramado. Não o seco, aquele já entranhado na terra, aquele
que as moscas cobriam e o sol, sem voz ou aptidão, era incapaz de repelir. O ouvido é
sempre dado a maldizeres: alguém escutou que o campo era lugar de despacho. Outros
disseram que era lugar de desova, que nada mais era que um despacho mal disfarçado. Dava
tudo no mesmo, descaso. Autoridade não ouvia nem sabia. Ou melhor, fazia que não sabia
porque tinha coisas mais importantes a resolver: as urgências do empresário e do colega
senador. Autoridade constrói lei e santos. Alguns hoje foram para o céu, mortos inocentes.
Alguém deixou a vela queimando no solo em sinal de despeito. Alguns hoje conseguiram o
atalho para o Paraíso. No ar, além das moscas, o cheiro de álcool barato e da pólvora que
alguém esqueceu de levar. Meu estômago embrulha só de lembrar a vergonha, a vontade de
expulsar os sem-teto e os sem-interesse que só carregam a solidão humilhada. Semana
passada parei um instante para conversar com eles. Não todos, só alguns, mas fui avisada
para não voltar.
Ato 2 – personagens
Loreta – a mais nova
Marcela – a mais velha
Joselina – a mãe
Josimar – o pai
O rosto da mais novinha ficou grudado no meu pensamento: chupeta na boca, choro no
bico, desconsolo no beiço. Não resisti, então voltei, para amansar o pranto da menina com
pirulito. A outra veio em seguida, a maiorzinha de perna malfeita, magra feito varapau,
boneca mal ajambrada debaixo do braço, meio sorrindo ao ver o pirulito na minha mão
acenando. Consolo que é bom não pude dar, eu também desconsolada de tanta miséria, sem
poder dar calor mesmo com esse tempo quente. Manaus ferve em dia de matança. A mãe
veio em seguida, preocupada. Não com as filhas, com as ameaças. Autoridade é coisa séria.
De matar ou morrer. Estava atrasada para pegar o ônibus. Não achava o pai para cuidar das
meninas enquanto ia trabalhar na casa da madame. Decerto ia pegar esporro. Decerto ia
pegar as contas, expulsa do trabalho porque madame não tem tempo de ouvir lamento, é
daquelas que cantam Legião Urbana tomando banho. Tempo perdido. O pai é daqueles que
chutam o pau da barraca. Indiferente, já nem se importa, só quer conversa, cana e cerveja,
que é para espantar as moscas que a poeira esconde, crente que algum incentivo um dia
vem, mesmo que leve algum desaforo para casa, mesmo que haja desgoverno e ele possa
ter uma casa, que é só um modo de dizer. Casa é o sonho que, com sorte, um dia vai
construir. Quando a invasão deixar de ser invasão. Quando a autoridade der título de posse e
passe livre.
Ato 3 – plateia
Dono-do-bar
Fregueses
Putas
Porcos
Policiais
Repórteres
Jornalistas
O tranco das coisas tristes afoga as lembranças que teimam em voltar à mente para me
resgatar do mundo dos mortos. Eu uma morta-viva, uma assistente social que ainda se
permite sensibilidades no rosto de fantasma que sopra segredos. Tudo aconteceu muito
rápido. A autoridade disse que Josimar era o chefe dos invasores da área de preservação
permanente. Já o traficante disse que Josimar era a cara de um desafeto. O caboclo foi
procurado enquanto arranjava as armações e os piquetes utilizados para a demarcação dos
lotes. Sentenciado por um lado e por outro, condenado por um lado e por outro. Balas de
dois calibres, equilibrando a balança que nunca se equilibrava. Morreu com seis tiros no peito
enquanto erguia os barracos de madeira na área desmatada. Enquanto a mulher estava fora
na casa da madame e as meninas eram vigiadas pelo vizinho que já lhes esticava o olho, ele
também desmatado de sentimento. Quando a mulher chegou, achou que o melhor a fazer era
enterrar o corpo do marido no cemitério que já era clandestino. A menina mais nova, que
trazia o pirulito para adoçar a boca dos amargos, nada entendeu. E a mais velha lançava
olhos ao horizonte, pensando no que foi prometido pelo vizinho, o presente que ela nem
sabia que estava prestes a ganhar num desembrulho.
Ato IV – Final
A mulher sumiu com os poucos pertences, todos revirados por policiais militares, os
seguranças da área. A barraca violada, o marido violado, a filha violada. E tudo some de vista
para se repetir em outro canto, em outro tempo que nunca é o mesmo dos que têm
urgências.
A cortina se fecha. A plateia aplaude de pé. Mas a cena da vida real continua longe de olhos
que nada veem.
Conto incluído no livro O verso do reverso de Sandra Godinho
SINOPSE: Os contos de "O verso do reverso", de Sandra Godinho, defendem uma aposta: a vida como aquilo que se materializa por detrás do sentimento, o mundo como uma apologia de sentidos: “o primeiro filho, o primeiro sopro, o primeiro sono”. Dores da chegada, dores do renascimento, dores do fim.
Comments