Sandra Godinho
Um copo de cólera e de carne. De sangue imolado e coagulado pela raiva que nunca é pouca no corpo miúdo. Miúdo só meu tamanho. Eu me fiz resiliência e vontade que nunca se aquieta. E humor ácido que acabou me corroendo por dentro. Entro na garagem sem olhar para trás. Tiro o pote de vidro cheio de formol do fundo da prateleira e despejo nele o conteúdo das minhas mãos sujas. Deixei o líquido transbordar um pouco. Tudo transborda nos meus mal vividos treze anos de ilusão e de desilusão. Mas hoje é diferente. Eu tremo em passo incerto. Retorno o pote à prateleira, ao lado de outros com cabeças de Barbie. Só então recuo para observar melhor a estranha coleção de objetos. Visto daquela distância, o pênis acomodado no fundo do pote mais parece uma cobra morta, uma vela azulada que não serve para nada. Nem promessa nem prece. Nem penitência. Já era tempo.
Eu grito como se fosse eu a morrer, como se fosse o bastante. Não é. Nada ameniza as palavras cuspidas e os gestos impiedosos. Nada me resgata ao mundo da infância. Perdida. Ninguém é mais inocente. O que Deus uniu o homem não separe. Eu separei. Tragédia, ainda que involuntária. Tragédia, com a força que não é minha. Talvez de algum animal enclausurado. Tragédia, que é só questão de fôlego e oportunidade. Volto ao quintal cheio de ervas daninhas, eu também danosa, uma praga indesejada a causar penúria e pena. Qual será a pena para um ser desprezível como eu? Malvada. Menina má.
Má nada. Fiz o que tinha de fazer. Pego a faca suja de sangue e com ela cavo um buraco no canto do terreno seco. Enterro a lâmina afiada de carne na cova e restituo a terra revolvida ao seu lugar de pertença, resgatando a ordem na desordem que me encontro. Em seguida, cavo novo buraco para fazer desaparecer os potes - que sempre turvam a visão - e a roupa manchada de sangue. Tomo um banho de mangueira para esfriar a cabeça, lavar o sujo da pele sem lavar o da alma. Visto uma muda de roupa tirada do varal. A cada um, o medo e a superação. A cada um, o desafio e a solução.
Faço o caminho de volta ao barraco de tábuas cujas paredes cheias de fendas descolam. Rachaduras e ranhuras na pele que conheço bem porque convivo com elas há tempos. Nunca cicatrizam. Agora, talvez, com bicho morto. No chão, marcas de sangue coagulado fazem trilha. Vou seguindo e chego à cama com cuidado para não pisar na mancha avermelhada que ainda se espalha feito visgo. Apanhar? Mais nenhuma vez. Nem ficar roxa. Nem ficar mal. Quem cala, nem sempre consente. Ressente. O mundo anda ensonado por interesses, cego ao que não lhe convém. Entorpecimento dos infernos. O cheiro metálico de sangue empapa o casebre frágil. Fecho os olhos e suspiro. Então os abro novamente, agora vejo com clareza o corpo inerte, guardando apenas para si a agressão. O talho no ventre, o sexo arrancado. Como se fosse o único a sofrer. O desgraçado despejado no chão como o jato de um gozo. Nenhuma ameaça de me matar. A pancadas. A porrete. A pontapés. Não mais. Nenhuma reação. Nem mais braços no ar a servir de escudo. Ato involuntário. Veja o que você fez, Ariel. Não fiz nada, mamãe. Você nunca verá a tragédia encenada. Fugida que foi. Assim que soube que o marido abusava da cria, de mim. Sumiu, não por desonra, mas por ciúmes e raiva. Depois de apanhar por tantos anos, viu que o abuso não tinha valido a pena. Quantas vezes eu lhe avisei, mamãe? O abuso tinha substituído o amor há tempos. Sou agora um arremedo de futuro, mal servida de pais. E isso não é mentira, mamãe. Não viu o que estava por vir?
O acerto de contas - com nove anos de atraso - em fúria desmedida. Acabou, Ariel. Terminal. Término. É o fim. Não. É início. Não tenho nada a temer, nem presente depois do estupro, nenhuma Barbie vale a violação. Dos sentidos, pior que a do corpo. Das falas abortadas, das vontades recolhidas, da violência que nunca parece bastar. Vou alegar defesa. Legítima. Legível. O cuspe, papai, dou agora no teu corpo ainda quente. É só desabafo, que também sai como um jato. Então a sirene da polícia ressoa na esquina e vejo aparecer a luz vermelha da viatura pela porta escancarada, inundando a rua. Intermitente.
Os policiais entram no casebre e observam a cena com horror. O delito cometido também privando seus sentidos. Um policial me retira da casa e me leva para a radiopatrulha. Eu me sento no banco de trás, sem voz ou vontade. Olhares desviados. Menina má, Ariel. Muito má. Afasto o pensamento distorcido. Quando vou aprender? Uma mulher me é apresentada. Assistente social, diz se explicando, diz se insinuando legitimável. Onde estava quando eu precisei? Não quero pensar, mas penso. Ela também merece um castigo. Não merece? Todos merecem. Por deixarem carneiros inocentes servir de presa a lobos esfaimados. Lobos que salivam desejos. Não existem histórias de fadas, só de bruxas com magia negra. Então o oficial entra no carro pelo banco da frente e me olha, garantindo que vou ficar bem. Ele não entende que já estou bem. Os oficiais me espreitam, o cansaço me obrigando a trégua.
Alguém entrou em casa enquanto eu brincava no quintal, invento. Alguma namorada descontente, comento ingênua. Menina má, Ariel. Que nada. A mim me resta o juízo. Ainda. A vida é de quem se aguenta, é de quem tem fôlego. É de quem reage. Alguns policiais falam em delegacia, outros em abrigo e eu só penso em não me tornar a louca do bairro. Por que estão rindo? Não. Não estão rindo. Eles me fazem companhia. Não podem me deixar sozinha. A solidão não vai mais me incomodar. Nunca mais. Eu sinto frio. Sinto alívio, mas ainda não consigo chorar.
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