A cidade transformava-se incessantemente. Sob a batuta do prefeito urbanista e arquiteto, São Paulo convivia com construções e demolições, vestindo cada vez mais o traje de cidade-progresso. Getúlio Vargas acabara de instituir o salário mínimo e reafirmado sua neutralidade na guerra; Paris estava ocupada pelos alemães; Carmen Miranda retornava aos Estados Unidos para uma carreira de sucesso; Charles Chaplin estreava O Grande Ditador; Lana Turner brilhava em Hollywood; Adoniram Barbosa atuava como rádio-ator. Na cabeça de Dorotéia, não ia nada disso, não lhe importavam tais acontecimentos. Ainda remoía a tristeza por não ter conquistado o prêmio.
Há três dias atrás tinha vivido a noite mais importante do seu ano. Meses preparando-se e sonhando. Como desejou! A rádio Capital tinha inovado este ano. Além da faixa de rainha do rádio de 1940, a ganhadora receberia um prêmio em dinheiro. Dinheiro conseguido através de patrocinadores de peso, principalmente a Cia City, a construtora de maior nome na cidade, responsável por inúmeros bairros em construção. Quatro contos de réis. Com isso daria para trazer a mãe e a filha do interior e alugar uma casa. Precisava sair do quarto alugado. Úmido, frio, era indigno viver daquela maneira. Isso abriria portas, quem sabe uma contratação por alguma rádio ou até mesmo a Capital, sabia que estavam em expansão, ampliando o prédio, selecionando textos para a primeira radionovela, o proprietário apostava alto, gastando muito para elevar a rádio, pelo menos, para o quarto lugar em audiência.
Amava cantar, fazia isso desde menina. Enquanto a mãe lavava roupa no riacho, ia lhe ensinando as músicas e as duas faziam um dueto. Uma época feliz, até a morte prematura do pai quando então conheceram, de fato, a pobreza. Depois, quando adulta, o passo mal dado. Engravidou de um namorado, na verdade não era nada sério, mas deu bobeira, facilitou. Quando falou da gravidez, ele fugiu e nunca mais o viu. Então provou das consequências de ser mãe solteira. Levou pedrada, ofensas, mexericos de toda espécie. Até que muniu-se de coragem e caiu na metrópole, há dois anos, sem conhecer ninguém, sem emprego e poucos recursos. A mãe ficou chorosa, criando a neta e esperando a oportunidade de unir-se a filha. Sofia, sua menininha, sua luz. Como precisava delas junto de si! Felizmente tinha o emprego na fábrica de meias, metade do salário ia para elas, mas não gostava, não era para aquilo. Precisava cantar, precisava da música como alimento à alma. Desde a grande final vinha relembrando momento a momento. Sua apresentação foi ótima, apesar do nervosismo. Deusa Da Minha Rua com sua interpretação tinha arrancado aplausos fervorosos. Uma emoção indescritível como nunca havia sentido. Aquele auditório imenso, lotado, com todos os olhares para ela, fotógrafos, o brilho dos vestidos de festa, o comunicador Paulo Roberto anunciando seu nome. E depois, a decepção. Terceiro lugar não era ruim, aliás era ótimo, mas não o que queria. E pensar que preparou-se tanto, trocou várias refeições por um mísero sanduíche para poupar dinheiro para o aluguel do vestido. Quando ouviu o resultado teve que sorrir e parabenizar a vitoriosa. Por dentro já desmoronava. Nem lembrava-se como chegou em casa, só sabia que caiu no sono depois de muito choro.
Devia estar perto da pensão. Mais dois quarteirões e Clotilde estacionou o carro. Na porta da casa, notou a pintura envelhecida e o mal estado do imóvel. Sentiu desconforto em bater na porta, imaginando a casa por dentro. Mas já que tinha vindo era melhor resolver de uma vez. Uma jovem vem atender e abre caminho para ela entrar. Como imaginou, o interior estava bem decaído. Móveis velhos, cheiro de mofo predominante, assoalho gasto, teias nos cantos do teto da sala. Dois homens descem a escada e ficam olhando-a indiscretamente. Ela vira o rosto e pede à menina que quer falar com Doroteia. Como alguém podia morar num lugar desse? A garota demora-se a mexer, arrasta os pés como se carregasse correntes. Lá de cima ouve-se uma explosão de gargalhadas. Clô passa a mão pelo cabelo à la Rita Hayworth, ajeita o chapéu Cartwheel, inclinando-o para o lado da cabeça. A menina aparece no alto da escada e fala para ela subir.
— É a terceira porta do lado direito — aponta com o dedo para o corredor.
Pensa que a garota deve sofrer de anemia, até sua voz sai apagada e lenta.
Doroteia a espera na porta do quarto com ar de surpresa. Não sabe como cumprimentar a vencedora do concurso e não faz a mínima ideia do que ela está fazendo ali. Por fim, solta um olá seguido de um sorriso sem graça. A outra exibe sua bela dentição e abre seus lábios pintados de vermelho num sorriso amplo.
Oferece uma cadeira à visitante e senta-se na cama.
— Como sabia onde eu morava?
Clô coloca a bolsa sobre uma mesinha e passeia, discretamente, o olhar pelo quarto pequeno. Inesperadamente sente um impulso de tristeza pela condição da moça. O cheiro de mofo é mais intenso, a fraca iluminação desce por um fio elétrico, cheio de sujeira, com uma lâmpada pendurada.
— Paulo Roberto que me passou seu endereço. Espero que me perdoe, não sabia como avisá-la antes.
Doroteia permanece séria encarando a visita inesperada. Balança a cabeça e pede desculpa pela bagunça.
— Não tem problema — responde sorrindo, tentando descontrair a jovem. — Linda sua apresentação. Procurei-a para lhe dar os parabéns mas você saiu rápido.
— Acho até que fiquei muito. Nossa, não sei para quantas fotos eu posei. Acho que cantei bonito também, mas não foi o suficiente. Você foi melhor.
— Dei sorte.
— Oh, não. Foi a melhor, de verdade.
O jeito simplório de Doroteia cativa Clotilde. É visível que está desconfortável. A diferença entre as duas é gritante. Tenta colocar-se no lugar dela. Também ficaria assim diante de uma mulher bem vestida, sentada num quartinho pobre como aquele. Enquanto uma usa um vestido simples, chinelos nos pés e cabelo preso, a outra traja um tailleur com a cintura marcada, verde musgo, com um cravo branco na lapela, meias e salto alto. A primeira, a figura da simplicidade. A segunda, da exuberância.
— Bem, digamos que nós duas fomos impecáveis e somos muito talentosas — volta a sorrir.
Desta vez Doroteia corresponde, sentindo-se mais à vontade. No entanto, está muito ressabiada com sua presença. Não percebe qual o interesse dela. Clô parece ler seus pensamentos.
— Com certeza está muito curiosa do porquê de eu estar aqui — fala, tirando o chapéu, descansando-o no colo. Passa as mãos pelo cabelo ondulado que a outra olha com admiração. Seus gestos são naturais de uma dama, pensa ela.
Não responde nada e permanece olhando sua colega de concurso.
— É o seguinte — faz uma pausa, indecisa. — Primeiro quero pedir-lhe para me ouvir até o fim. O que tenho para dizer-lhe é muito sincero. Depois, pense bastante. Não precisa me responder agora. Tudo bem?
Doroteia fica em alerta. Concorda insegura e pensa no que virá em seguida. Cada vez mais a visita parece-lhe muito inesperada e misteriosa. Clô descruza as pernas, inclinando-se para frente.
— Desde que a conheci, gostei de você como pessoa e artista, tem uma voz linda. Não sei explicar, fui com seu jeito. Depois, fiquei sabendo de sua história. Acho que uma mulher forte e corajosa como você merecia ganhar o prêmio. Você é valorosa, Doroteia. Sabe o quanto a sociedade sabe ser cruel com uma mãe solitária e ainda por cima artista, não é? Eu sei que o concurso não era por merecimento de história de vida e sim talento musical e você tem de sobra. Na realidade, não sei qual é o diferencial que faz esse ou aquele ganhar. Enfim, não importa. Continuando.
Nesse ponto ela para e cala-se, olhando Doroteia que nem pisca. Tem vontade de rir com o ar intrigado da colega. Demora-se mais a reiniciar. Pensa em cada palavra.
— Não tenho dúvidas de que você deve continuar neste caminho, vai chegar sua hora e não demorará a valorizarem você. Persista e não escute os preconceituosos! É só uma questão de tempo... Mas também sei o quanto as coisas podem ser difíceis e penosas, principalmente a quem não tem recursos e uma filhinha para criar. É lógico que fiquei feliz com meu prêmio, gosto de dinheiro. Mas sabe de uma coisa? O que mais me deixou feliz foi o momento, a oportunidade de vivenciar todo o processo de seleção até a final. Tudo foi mágico! Nem precisava do prêmio em dinheiro. A faixa então! O que venho experimentando é indescritível.
Doroteia tenta falar mas ela continua.
— Espere, não me interrompa, deixe-me ir até o fim. Já estou terminando. Tenho meus planos de ir para o Rio. Não exatamente agora, primeiro vou saborear meu título por aqui. Mas é lá que as coisas acontecem. Todos os grandes cantores estão lá, as melhores chances, as maiores rádios. Já pensou, cantar na Nacional? Seria o máximo! Então, — inclina-se mais, pegando nas mãos dela — eu quero, do fundo do meu coração, doar os quatro contos de réis do prêmio para você. Venho pensando nesses três dias, a ideia plantou-se na minha mente e não saiu mais. Perdoe se meu oferecimento vai deixá-la ofendida ou sem graça, mas é sincero. Não quero um mil réis, dou-lhe todinho.
Depois de um longo momento encarando Clotilde, ela solta-lhe as mãos, levanta-se lentamente e caminha em direção a janela. Ao que parece ser uma eternidade olhando pela vidraça, retorna ao seu lugar sem sentar-se. Está visivelmente perturbada. Vira-se e fala convicta:
— O prêmio é seu. Não posso aceitar.
— Mas eu posso oferecer, fazer com ele o que bem quiser. Pense bem. Isso iria ajudá-la muito. Não quer sair daqui? Alugar uma casa, trazer sua mãezinha e filha? Então! Essa é a grande oportunidade.
Volta a andar pelo quarto olhando o chão. Balança a cabeça e repete “não” várias vezes.
— Venha cá, sente-se aqui — Clô estende os braços, chamando-a. — Não precisa ficar assim. Escute, vou deixar você pensar. Eles já me deram o dinheiro. É só você responder que sim. Reflita, mas se eu fosse você, aceitaria. Pense em tudo que poderá fazer com ele. Quero doar sem esperar nada em troca e ninguém precisa ficar sabendo, é um segredo nosso. Entendeu? Outra coisa. Mesmo que não quiser, saberei respeitar sua decisão, não tocarei mais no assunto.
— Vai te fazer falta.
— Não passarei necessidades por causa disso. Tenho meus recursos, ideias na cabeça. Já pensei em tudo. E também não ofereceria se fosse me causar problemas. Não acha?
Doroteia concorda lentamente com a cabeça.
— Isto não está certo. A campeã foi você, o dinheiro é seu. Não posso aceitar.
— Não vou repetir o que já disse. Apenas quero fazer este ato de coração, o que me deixa muito feliz. Você precisa muito mais do que eu. Pense com carinho.
Clotilde dá por encerrada a conversa, recoloca o chapéu e retoca o batom, conferindo seu reflexo no espelho sobre a pia no canto. Apanha a bolsa. Com a mão na maçaneta, dá uma última olhada na colega ainda sentada na cama, com o olhar baixo.
— Procure-me quando tiver a resposta.
Doroteia levanta a cabeça e não diz nada. Clô sai fechando a porta silenciosamente. Percorre o corredor até a escada, sorrindo. Sua alma está leve.
Enquanto isso Doroteia está perdida em pensamentos. A dúvida domina. Não era assim que queria. O prêmio é dela! Por outro lado, precisa desesperadamente. Onde conseguiria quatro contos de réis assim tão fácil? O que deu nela? Nem se conhecem direito. Não são amigas. Mas se não aceitar, depois poderá arrepender-se. O que fazer? Qual a melhor decisão? O que diria mãezinha se soubesse disso? Provável repreendê-la. Mas também não precisaria saber. Depois inventaria uma história. Começa a arrumar o quarto, guardar umas roupas jogadas. Precisava de uma boa faxina, isso sim! Essa torneira nojenta pingando de novo! Esse cheiro de mofo ardendo no nariz. Que vontade de sair daquele emprego que não a satisfaz nem um pouco! Quanta coisa poderia fazer com o dinheiro. Alugar uma boa casa, comprar os móveis, decorar o quarto de Sofia todinho de rosa. E depois? Como iriam se manter? Continuaria na fábrica até, quem sabe, o terceiro lugar lhe rendesse frutos. O evento estava cheio de repórteres e representantes de outras rádios, bem que alguém poderia procurá-la com uma boa oferta. É provável que a Capital a chamasse para seus programas de auditório. Cantar, cantar, cantar é o que mais queria. Não se rebaixaria aceitando metade do prêmio? Vergonhoso? Aproveitadora? Mas não está roubando. Clotilde ofereceu, veio até ela. E se alguém do meio ficasse sabendo?
Abre a porta e verifica o banheiro vazio. Rapidamente pega a toalha e apetrechos para o banho antes que se formasse fila. Retornando, abre a janela para o cabelo secar mais rápido. Fica olhando o movimento da rua que vai aumentando. Absorve-se olhando os carros, tentando encontrar no meio do ruído uma resposta para Clotilde.
Praticamente não dorme a noite toda. Até estranha levantar-se bem disposta na manhã seguinte. Está faminta pois não conseguiu jantar na noite anterior. Come seu pão com leite e sai para o trabalho que faz calada, pensando na proposta. Volta para casa caminhando. Passa por uma praça e senta-se num banco. Algumas crianças brincam, o vento é suave, a temperatura fresca. Doroteia fecha os olhos e pensa na mãe e no tempo em que cantavam juntas à beira do riacho. A lembrança traz uma emoção forte, saudades de um tempo em que não temia nada, tudo era fácil, pura magia e mãezinha, a rainha do seu reino encantado. Incrível como as coisas mais maravilhosas da vida estão na simplicidade ou naquilo que, sequer, desejamos! Hoje, sua princesinha estava longe e ela perdendo os melhores momentos do seu crescimento. Estaria pagando por um livre arbítrio errado? Mas quem sabe quando uma escolha é errada ou não? Teria feito bem em vir para São Paulo? Quantas vezes perguntou-se isso. Certamente, se tivesse permanecido lá, não teria mostrado sua arte como pôde fazer na rádio. É um mistério do que é de fato nossa escolha, e o que é destino, aquilo que já está escrito em algum lugar pré-programado para acontecer. Ah, se pudesse ver o futuro...
Ao chegar na pensão, estava, quase, convencida a não aceitar a proposta. Não seria certo ficar com um dinheiro que não era seu por merecimento. Clotilde dizia não fazer falta a ela, mas e se acontecesse algo? Uma emergência médica, um fato difícil na família, nunca se sabe o que nos espera. Ela ficaria muito arrependida, culpada mesmo. Consciência leve não tem preço e pretendia continuar assim. Iria se ajeitar, tinha fé em portas que iriam se abrir daqui para frente. Ao pisar no primeiro degrau da escada em direção ao quarto, Efigênia, a dona da pensão, diz:
— Olhe, pediram para você telefonar neste número — entrega-lhe um pedaço de papel. — Disse que é urgente. Alaíde. Você conhece?
— Sim, é vizinha de minha mãe. Mas não disseram do que se trata? Ela mesma que ligou? — fala, pegando o papel.
— Ela mesma. Parece coisa séria. Repetiu várias vezes.
— A senhora me dá licença de usar o telefone?
— Vai, minha filha, vai. Veja logo o que há.
Longos minutos de angústia se passam até conseguir falar com a vizinha. Num telefonema curto, Alaíde relata que a mãe estava doente, precisando de tratamento caro, cirurgia, e pedia que voltasse, a situação tornara-se insustentável. Ela mesma estava tomando conta de Sofia, a mãe passava a maior parte do tempo na cama.
Sai do telefone e senta-se no degrau. Vai absorvendo a gravidade do problema, lentamente. Mais uma vez a vida lhe cobrava uma atitude. Sua escolha, seu erro. Sua escolha, seu sucesso.
— Então, menina? O que aconteceu? — Efigênia demonstra preocupação.
Ela conta o que ouviu. O pensamento fervilha, tem que fazer alguma coisa e rápido.
— Preciso usar de novo o telefone.
Liga para a rádio pedindo o endereço de Clotilde. Em seguida, pede um táxi.
Felizmente o trânsito estava leve e o carro chega ao destino em vinte minutos. Ela a aguardava. Doroteia tinha pedido à rádio que telefonasse e, caso estivesse em casa, que ficasse a sua espera. Pelo semblante da colega, a benfeitora percebe que algo além da dúvida a corroía. Estava muito diferente. Fecham-se na sala de estar.
— Quer água, refresco? Está pálida. O que há?
A jovem recusa o oferecimento e anda pra lá e pra cá. Clotilde aguarda. Por fim, senta-se na beira do sofá e a encara.
— Eu pensei...bom, desde ontem eu... — remexe-se no assento, passa as mãos pelos olhos, — é que...— puxa um suspiro profundo. — Clotilde, eu estava pronta para não aceitar, mas acabo de receber um telefonema. Minha mãe está mal, precisa de tratamento. Tenho que voltar o mais depressa possível.
Não continua, nem era necessário.
Clotilde pega o talão e preenche o cheque.
— Suponho que não tenha conta em banco. Chegando lá providencie abrir uma. Aqui está — estende-lhe o pequeno papel.
Doroteia chora ao pegar o cheque. Incrível o quanto um pequeno papel pode significar. Clotilde a envolve num abraço.
— Apesar da situação, estou muito contente em saber que esse dinheiro vai proporcionar o bem de sua mãe. É por Deus uma coisa dessa, só pode ser.
— Não tenho palavras para agradecer. Muito obrigada é pouco.
— Não precisa. Eu sei que você é agradecida. Está tudo bem. O que importa agora é que tem como cuidar de sua mãe. Vai dar tudo certo, você vai ver.
Nos dois dias seguintes, Doroteia prepara a viagem, embarcando no trem das 19 horas. Deixaria para trás os propósitos que tinham-na trazido até ali. Levava na memória a noite mais linda de sua vida, quando ficou em terceiro lugar no concurso. Jamais se esqueceria que quase chegou a ser rainha. Teve a oportunidade de vivenciar um momento único e, o melhor, conhecer Clotilde, sua madrinha, seu anjo da guarda. Nunca conseguiria expressar seu enorme agradecimento por sua atitude tão nobre. E cá estava ela, mais uma vez, nas mãos do destino. Ou seria do seu livre arbítrio? Como dizia sua mãe, “desígnios de Deus.” Será que até a segunda guerra mundial é da vontade Dele? Apoia as mãos na barriga sentindo o cheque escondido no bolsinho costurado no forro da blusa. O bem mais precioso que levava, mais do que as próprias lembranças. O passaporte para a cura da mãe, assim esperava.
Conforme vai se distanciando de São Paulo, seu coração divide-se em dois sentimentos. Tristeza por colocar sua arte em compasso de espera, seus ideais em suspenso e alegria por poder pagar o tratamento médico. Como mãezinha ficará contente! Não sabia quando cantaria novamente, se voltaria a São Paulo, se tornaria a ver Clotilde. Bem provável nunca se tornar rainha do rádio. Agora que tinha encontrado seu caminho não podia crer que tivesse que ficar distante da música. Não suportaria. Iria encontrar uma maneira de mostrar sua voz, não sabia como, mas encontraria. Aproximando-se de casa, o coração já estava mais leve e cheio de esperanças. Estava aflita por abraçar os amores da sua vida. O que lhe reservava o destino? Ah, se pudesse ver o futuro...
Ligia Diniz Donega
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