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Foto do escritorEscrita Cafeína

Praxedes



Não sabia definir o que sentia assistindo ao seu enterro com os familiares, amigos e colegas de trabalho.

Ao redor do caixão, o rosário de reminiscências era pouco a pouco debulhado naquela estranha cerimônia.

— Perdeu muito sangue naquela vez em que se feriu feio. O talho, que aquela trave de chuteira fez, foi profundo. Se o amigo, que era fisioterapeuta, não tivesse dado aqueles pontos falsos e feito aquele curativo de contenção, teria ido mais cedo ainda - recordou sua mãe, enfermeira aposentada.

— Treinava como um animal de dia para morrer de câimbras à noite. Comparecia no campo e morria na cama - rememorou a esposa magoada e frustrada.

— Graças àquele chute que acertou no ângulo do gol do adversário, durante disputa de pênaltis, ganhamos um campeonato brasileiro - lembrou o companheiro de time com quem fez dupla no meio - campo por uns bons anos.

­— Desconheço cambota que tenha tantos acertos em chutes a gol. Deveriam ter feito uma réplica em látex para expor no museu - troçou o amigo folgaz.

— Aprendi a fazer embaixadinhas observando como sustentava tanto tempo a bola no pé - fez memória a filha mais velha, jogadora da seleção.

— Desconheço alguém com um arranque tão veloz do meio do campo até a área do adversário, ligando passes de maneira tão habilidosa. Esta é uma grande perda - declarou outro colega jogador do time arquirrival.

— A infecção foi galopante. Não conseguimos tratar a tempo porque não cuidou do diabetes - explicou o médico, também presente no esquisito velório.

No pequeno féretro, um miasma que conseguira escapar por entre uma ínfima fresta, lembrou a todos que o corolário de recordações não podia ter mais louros. A decomposição adiantava-se ao sepultamento.

Um amigo mais corajoso tomou para si a atitude que todos estavam com medo:

— E você, Praxedes, não vai dizer nada à sua querida perna esquerda que lhe conquistou tantas glórias?

Erguendo a cabeça, olhou todos os que estavam ao seu redor e, com voz firme e grave, disparou uma frase que vira certa vez no pórtico de um antigo cemitério:

— Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.

Um a um, desconfortáveis, os amigos, colegas e familiares foram saindo, com sensação de náuseas, até restar Praxedes, a canhota e o coveiro: único a aplaudir e elogiar a sua citação.

— O doutor disse uma verdade certa. Eles estão esperando pacientemente por nós. Sorte a sua já estar sendo preparado para a hora em que o resto for.

Sorrindo sardonicamente do humor maldito do coveiro, disparou a última frase bala enquanto colocava-se de pé em suas pernas de pau:

— Vai-se a canhota. Fica o Praxedes. Até breve, querida.

Não morreu aos cem anos de idade sem antes ganhar duas copas Paraolímpicas de futebol.

Quando os parentes foram fazer o translado de seus restos mortais do cemitério municipal para o mausoléu dos Praxedes, não encontraram a canhota que, misteriosamente, já estava lá esperando resto do esqueleto.



Leandro Costa

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